quarta-feira, 8 de maio de 2013

Os gêneros do discurso em Bakhtin


Os gêneros do discurso são discutidos, no contexto
do pensamento bakhtiniano à luz de uma concepção de
enunciado entendido como condição de possibilidade de
utilização da língua. O percurso feito por Bakhtin para
elaborar a noção de gênero é resumidamente o seguinte:
a ação humana está diretamente ligada à utilização da
língua, como esta ação emana de determinadas esferas
da atividade humana, a utilização da língua conseqüentemente reflete as condições e finalidades de cada uma.
Esse reflexo é perceptível no conteúdo temático, no
estilo e na construção composicional do enunciado. A
fusão desses três elementos no enunciado, em uma
dada esfera, determina tipos relativamente estáveis de
enunciados, ou seja, os gêneros do discurso.
Isso leva Bakhtin a se perguntar a respeito da existência de uma base comum dos gêneros do discurso, uma
vez que é possível duvidar que exista algo em comum
entre eles, já que cada um é oriundo de esferas diferentes
da atividade humana. Em outras palavras, o que há de
comum entre uma carta e um romance de Dostoievski,
por exemplo? Ou ainda: o que há de comum entre manifestações de linguagem tão díspares entre si que permite que todas, e cada uma a seu modo, estejam abrigadas na noção de gênero?
Em resposta, Bakhtin opera uma distinção entre
gêneros primários (simples) e gêneros secundários (complexos). O gênero secundário é aquele cujos enunciados
aparecem em uma circunstância de comunicação cultural
complexa e mais evoluída (é o caso do romance); o
gênero primário é aquele cujos enunciados integram o
anterior, conservando sua forma, mas adquirindo um
conteúdo no conjunto (é o caso da carta dentro de um
romance). Em outros termos, “O romance em seu todo é
um enunciado, da mesma forma que a réplica do diálogo
cotidiano ou a carta pessoal (são fenômenos da mesma
natureza); o que diferencia o romance é ser um enunciado secundário (complexo)” (p. 281).
Essa noção de gênero implica considerar o enunciado como unidade da comunicação verbal, já que os
gêneros seriam constituídos por enunciados relativamente estáveis. Cabe, então, discutir a concepção de
língua que subjaz à noção de enunciado em Bakhtin.
Esse problema é explicitamente estudado na segunda parte de Os gêneros do discurso. Nela, Bakhtin
elabora uma severa crítica à lingüística do século XIX
em função da supremacia atribuída ao locutor, minimizando o papel do outro na produção do enunciado.
Como produto dessa crítica Bakhtin desenvolve uma
teoria sobre três pontos que, em nossa opinião, são os fundamentos da proposta elaborada: a atitude responsiva
ativa, a compreensão responsiva ativa e a oposição
oração/enunciado. Para tratar a questão do gênero em sua
relação com a prática de análise lingüística, pensamos
ser essencial detalharmos, um pouco mais, cada um
desses pontos.
A atitude responsiva ativa se refere ao fato de um
enunciado ser uma resposta a enunciados anteriores
dentro de uma dada esfera. Isso quer dizer que toda vez
que um locutor fala (ou escreve), ele não só o faz em
função do objeto (tema) do seu enunciado, mas também
em resposta a enunciados de outros. Esse aspecto é
fundamental na definição dos gêneros do discurso, pois
introduz a idéia de dialogismo. Conforme Bakhtin “a
mais leve alusão ao enunciado do outro confere à fala
um aspecto dialógico que nenhum tema constituído
puramente pelo objeto poderia conferir-lhe” (1992,
p. 320). No que diz respeito à comunicação verbal, o fato
de o enunciado ser responsivo a outros enunciados faz
com que ele se configure num elo que está ligado a
outros que o precedem.
Contudo, esse mesmo elo da comunicação verbal –
o enunciado – está também ligado aos enunciados que o
sucedem. Assim, todo enunciado é elaborado em função
do outro, ou melhor, da resposta do outro, já que o
ouvinte não é meramente passivo: é isto o que Bakhtin
chama de compreensão responsiva ativa. “O índice
substancial (constitutivo) do enunciado é o fato de
dirigir-se a alguém, de estar voltado para o destinatá-
rio” (op. cit., p. 320). Saber quem é o destinatário, que
imagem o locutor tem dele, que influência ele tem sobre
seu enunciado caracteriza a composição e o estilo do
enunciado, logo, do gênero do discurso.
Bakhtin resume, de forma brilhante, o que apontamos até aqui:
 “As diversas formas típicas de dirigir-se
a alguém e as diversas concepções típicas do destinatário
são as particularidades constitutivas que determinam
a diversidade dos gêneros do discurso” (op. cit., p. 325).
Podemos, desta forma, relacionar atitude responsiva
ativa, compreensão responsiva ativa e enunciado/gênero.
Não mencionamos, até agora, a noção de língua. Esta
será explicitada a partir da apresentação do terceiro
ponto: a oposição oração/enunciado.
Tal oposição é apresentada da seguinte forma: a
oração é uma unidade da língua, não possui existência
real, entretanto, isso não impede que tenha um valor
semântico, a significação. O enunciado é uma unidade
da comunicação verbal cuja existência está ligada a
um determinado momento histórico. A constituição do
enunciado não exclui a oração. O enunciado é exatamente a realização enunciativa da oração. O valor semântico do enunciado, por sua vez, é o sentido.
A oração é neutra em relação ao conteúdo ideológico, sua estrutura é de natureza gramatical; o enunciado não é neutro, seu conteúdo veicula determinadas posições, devido às esferas em que se realiza. O
enunciado implica referência ao sujeito; a oração não. O
enunciado é identificável pelos seus traços enunciativos:
a alternância de sujeitos, o acabamento e a relação do
enunciado com o próprio locutor e com os outros parceiros da comunicação verbal.
Nesse sentido, o gênero não pode ser visto como
uma forma da língua, descontextualizada de seu uso
efetivo. Ao contrário disso, deve ser visto como uma
forma assumida pelo enunciado, em acordo com a esfera
em que é produzido. Como diz Machado (2001, p. 238)
o gênero se encontra com o enunciado, no pensamento
bakhtiniano, na medida em que se percebe que “o
enunciado é a unidade concreta do texto; uma unidade
resultante das combinações de gêneros discursivos –
formas específicas das variedades virtuais de uma
língua”. Os enunciados integram os gêneros e se definem
pela relação que mantêm com eles nos diferentes usos da
língua nas diferentes esferas da comunicação social.
A prática de análise lingüística, portanto, não pode
se restringir ao estudo da oração, mas deve contemplar a
linguagem no seu aspecto de enunciado, de unidade
constitutiva de um gênero discursivo.

Fonte: Revista Eletrônica, Kuhn, T. Z. & Flores, V. N.

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